quinta-feira, 19 de maio de 2011


  UMA ÉTICA DA 

REVOLTA


José Geraldo Couto
FOLHA DE SÃO PAULO
13 de dezembro de 1998




Quando Albert Camus publicou "O Homem Revoltado", em 1951, Francis Jeanson e Jean Paul Sartre desancaram o livro e seu autor nas páginas da revista francesa "Temps Modernes".

Os supostos "defeitos" do texto camusiano apontados por Jeanson (subjetivismo, maleabilidade do pensamento) e Sartre (incompetência filosófica, erudição duvidosa) são justamente os pontos de que parte Manuel da Costa Pinto para mostrar a filiação dos escritos não-ficcionais de Camus à linhagem do ensaísmo francês, de raiz montaigniana.

Mais que isso: "Albert Camus - Um Elogio do Ensaio" mostra como a natureza lábil e movediça do ensaio adequa-se à perfeição à disposição intelectual e ética de Camus, para quem a condição trágica do homem provém, por um lado, da contradição entre seu desejo de clareza e a opacidade do mundo e, por outro, do conflito entre sua vontade de permanecer e a consciência de sua finitude.

"Só sei que nada sei" era, segundo dizem, o moto de Sócrates. Se fosse possível reduzir a uma frase o pensamento de Camus, talvez ela fosse: "Só sei que não é possível saber". Pascal, três séculos antes, teria dito mais ou menos a mesma coisa, mas acrescentando: "E por isso creio cegamente".

Já Camus, se fosse acrescentar algo, provavelmente diria: "É por isso me volto". Da gênese do sentimento do absurdo à configuração de uma ética da revolta, o pensamento de Camus, como nos mostra Costa Pinto, é de uma coerência ímpar, que se manifesta tanto em suas obras de ficção como nos ensaios "filosóficos" e nos textos de crítica literária. Vista em conjunto, a obra de Camus é um pensamento em contínua construção, em que ficção e ensaio dialogam e se iluminam reciprocamente.

Os próprios romances camusianos são qualificados por Costa Pinto de "ficção "moraliste'", pelo "controle do escritor sobre o sentido de suas representações", visando à expressão de uma "certa concepção do homem". Mas estamos colocando o carro na frente dos bois. Antes de debruçar-se sobre a obra de Camus, o livro de Manuel da Costa Pinto trata de desenhar a gênese e os traços definidores do ensaísmo francês, distinguindo-o, por exemplo, do "familiar essay" inglês e da "prosa doutrinal" portuguesa.

Analisando a literatura de autores como Montaigne, Pascal, La Rochefoucault e Chamfort, Costa Pinto busca a estratégia de enunciação que os aproxima, para além da diversidade dos temas e estilos. O que há em comum entre esses autores tão diversos é, primeiro, uma postura essencialmente antidogmática, um ceticismo diante da possibilidade de "penetrarmos a identidade das coisas", um afastamento dos grandes sistemas explicativos da natureza e da vida.

Mas há também uma proximidade quanto à forma literária, argutamente sintetizada por Manuel da Costa Pinto: "Subjetividade como horizonte de representação, pensamento por imagens e, como consequência, oscilação constante entre reflexão e escrita ficcional".

Abandonada a pretensão a uma ontologia, o ensaísmo limita-se a uma observação da experiência humana fortemente marcada pelo ponto de vista do observador. Recorrendo à narratividade e à construção de imagens, recusando os conceitos abstratos, o ensaio se configura como um gênero em que "a produção de sentido e de referentes é homóloga ao processo de criação literária".

Não por acaso, o ensaio clássico francês, que tem origem em Montaigne, surgiu no ocaso do Renascimento e floresceu no século 17, numa espécie de interregno entre o domínio da escolástica medieval e o império da razão iluminista. Em outras palavras: no hiato entre as certezas da fé e as certezas da ciência.

Em lugar dos sistemas fechados de explicação do mundo, o ensaísmo introduz o pensamento em movimento, e sua própria forma literária reflete essa percepção do fragmentário e do transitório. É por essa vereda que Camus se aventura, na contracorrente das filosofias totalizantes, antecipando a operação de desmonte dos grandes edifícios teóricos que caracterizaria a melhor produção intelectual da segunda metade do século.

Escrito com elegância, clareza e um mal escondido talento literário, "Albert Camus - Um Elogio do Ensaio", que surgiu da tese de mestrado em teoria literária de seu jovem autor, é um trabalho pleno de lucidez e paixão sobre uma das obras mais lúcidas e apaixonadas de nosso tempo.

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